sábado, 13 de agosto de 2016

Lindo texto!

Resultado de imagem para livros desenho

Heloísa Seixas
Escrito em 17/06/2001
Publicada no livro Uma Ilha Chamada Livro (2010)
Publicado também na Revista da TAG de agosto/2016


Li certa vez que Alma Mahler guardava, na sala de sua casa, o berço em que dormira na primeira infância. Era um berço antigo de madeira, tosco, desses com um dispositivo que os faz balançar docemente, ao menor toque. Ali, no bojo vazio daquela que um dia fora sua própria cama, Alma guardava seus livros prediletos.

Arrumava-os, empilhados, em várias camadas, enchendo todo o espaço onde um dia houvera um colchão, lençóis, brinquedos e uma criança – ela própria. Certamente, quando remexia nos livros, buscando algum em especial, um livro para enternecer-se, para recordar ou esquecer – que é para isso que serve reler livros prediletos –, certamente, então, seu braço, esbarrando na lateral gradeada, fazia o berço balançar. E ela os ninava, talvez sem perceber.

Essa imagem de livros queridos sendo acalentados me encheu de ternura. Assim como um dia me comoveu ler o depoimento de Isak Dinesen, falando sobre a ansiedade que sentia, em sua fazenda na África, enquanto aguardava a chegada dos livros encomendados na Inglaterra. E de como, ao recebê-los, tocava cada volume com a ponta dos dedos, como se retirasse da caixa copos de finíssimo cristal. Sabia, ao tocá-los, que aqueles seriam seus únicos exemplares durante meses, até que chegasse nova remessa. Eram um tesouro insubstituível.

“Por isso, eu torcia para que os escritores tivessem dado tudo de si ao escrevê-los”, explicou. É curioso. Porque ela própria, Isak Dinesen, escrevia assim, sem economizar, sem fazer concessões, pegando cada camada da narrativa e dissecando-a até o último fio. Escrevia dando tudo de si, entregando-se em cada linha – como se esperasse ser lida por um náufrago numa ilha deserta.

Esse amor pelos livros me comove, um amor que venho aprendendo a desenvolver, nos últimos anos. Antes, guardava meus livros de qualquer jeito, sem qualquer ordem nas estantes. E, ao lê-los, pouco me importava se os abria demais, se os virava ao contrário, se deixava a ponta da capa se enrolar numa feia orelha.

Estou mudando. Hoje, presto atenção nas pessoas que sabem cuidar bem de suas bibliotecas e observo a maneira como decidem a posição de cada volume nas estantes, o carinho com que tiram os mais antigos das prateleiras para tentar restaurar as lombadas, alisando-as cuidadosamente com goma e pincel. São gestos de uma delicadeza comovente, cuja observação me faz refletir. E, cada vez mais, tenho diante dos livros uma atitude de reverência. Olho-os e vejo como eles são puros, íntegros – como as crianças e os cristais.

Fonte: http://heloisaseixas.com.br/contos-minimos/2001-2/

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