segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Infinita Compreensão

                                                                                                                           Maria Áurea Ribeiro

           O papel da mulher judia na sociedade, nos tempos de Jesus, retratava ainda a mesma dependência a que ela se submetia nos tempos de Moisés. Lembra Daniel-Rops[1] que tudo começou em decorrência de uma interpretação de um dos dez  mandamentos: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo; nem desejarás para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”[2], os homens concluíram então que a esposa lhes pertencia como qualquer outro bem. Aos olhos da Lei a mulher era considerada menor, irresponsável, mas do ponto vista religioso ela não tinham as obrigações que os homens tinham, mas eram aconselhadas a conhecerem a Lei tão bem que pudessem instruir os filhos e instar os maridos a cumprirem suas obrigações religiosas. Dentro do lar ela era muito importante. Era ela que produzia uma variedade de artigos, abastecia sua casa de água e cuidava do óleo muito puro para a lâmpada do Sábado de Descanso, a fim de que não se apagasse nesse dia santo.   

           A Bíblia, escrita por homens, enfatiza as falhas femininas e pouco destaca as falhas masculinas. A lei de Israel era muito rigorosa, principalmente, com a mulher adúltera, pois se baseava diretamente em um dos mandamentos do decálogo: “não cometerás adultério”. Mas conforme Rops[3] a definição de adultério para a mulher não era a mesma para o homem. O adultério masculino só era crime se ele seduzisse uma mulher que estivesse noiva ou fosse casada, porque então estaria prejudicando a família do outro. Mas a mulher suspeita de adultério deveria passar pela mesma prova da água amarga aplicada às noivas, descrita no livro de Números[4]: tinha de beber uma mistura horrível, cujo principal ingrediente era pó do chão do templo, e se vomitasse ou se sentisse mal sua culpa era tida como certa. Se fosse apanhada em flagrante era condenada à morte. Eles a arrastavam  “pela gola do vestido” diante do povo e  a matavam. A morte por apedrejamento foi estabelecida em Deuterônomio apenas no caso das noivas infiéis. Mas tarde, a morte por estrangulamento foi introduzida para as adúlteras no sentido mais exato da palavra. Ao que parece, porém, pelo conhecido exemplo da mulher apanhada em adultério, no Evangelho de João, as esposas infiéis eram certamente apedrejadas nos dias de Jesus e Amélia Rodrigues[5] completa a informação dizendo que “condenava-se a mulher fragilizada pelo erro, sem examinar-se a responsabilidade do cônjuge ou a culpa daquele que delinquira e a levara ao deslize”.


          Conta João, no seu Evangelho[6], que Jesus foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, - conforme Khalil Gibran[7], ela chamava-se Joana, era mulher do camareiro de Herodes e amante de um saduceu - colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.»

         Para todos nós, que julgamos o nosso próximo com tanta facilidade, parece uma atitude exemplar de Jesus perdoar a mulher adúltera, porque a nossa visão limitada abrange apenas a cena narrada por João. Não temos ainda uma visão que transcenda os fatos limitados pelos nossos cinco sentidos.

          Mas a extensão dessa ação de Jesus vai bem mais além desse quadro apresentado por João, o evangelista. Com um olhar mais abrangente, envolvendo todos que fizeram parte desse acontecimento, Amélia Rodrigues[8] conta sobre os fatos que se seguiram após esse momento. Naquela noite, a mulher busca Jesus para contar a sua história: tinha lutado muito antes de tombar... O sedutor tinha rondado seus passos como lobo voraz ante a presa invigilante... O esposo, passados os primeiros dias da novidade conjugal, retornou às noitadas alegres, deixando-a em solidão... Enferma da alma e carente embriagou-se de concupiscência[9], agora padecendo a zombaria geral, abandonada e sem lar, não sabia que rumo a seguir e o Mestre indica o roteiro: “


“Não são de importância o que os outros pensam de nós e a cobrança, pela impiedade, com que desejam fazer justiça. O problema íntimo é vital e somente quando o homem se reintegra  no concerto da ordem, do bem, é que pode fruir de tranquilidade... Assim, busca a oportunidade de reparação e adapta-te à situação atual, aguardando o amanhã com a disposição de quem compreende o prejuízo a si mesmo causado, ao arrojar fora o hoje...”


          E continua contando, no mesmo texto, que dez anos depois, na cidade de Tiro, uma casa humilde de aspecto e rica de amor, recolhia peregrinos cansados e enfermos sem ninguém. Uma mulher reunia ali os infelizes, limpava-lhes as chagas e falava-lhes de Jesus. Tornara-se, por isso, querida e respeitada por todos.

         Um dia um homem chagado em extrema penúria é recolhido nesse abrigo, tendo as úlceras lavadas e aliviadas, ouvindo-a falar sobre Jesus conta-lhe sua história: “Também eu tive a honra de O conhecer, mas não soube beneficiar-me...Salvou a minha mulher que adulterara contra mim e não me concedeu uma palavra, sequer, de consolação...Passados os anos e havendo despertado para a verdade, tenho-a buscado em vão por toda parte, até que a doença me devorou o corpo...”

         Naquele mesmo tempo, o antigo sedutor[10] encontrava-se vencido por dermatoses sifilíticas... sendo expulso da cidade sob suspeição de lepra... após vagar sem rumo, alquebrado quão infeliz, passou a recordar-se das suas vítimas, quando, quase desfalecente, foi recolhido na Casa do Caminho, na estrada de Jope, e ali recebeu das mãos caridosas de Simão Pedro o tratamento adequado e o apoio moral para a exulceração[11] íntima.

          O olhar de Jesus envolve a todos indistintamente e o socorro que parece chegar apenas a vítima, na verdade, se estende também a todos que se encontram entrelaçados no drama dela.

          O exemplo de não julgamento se evidencia pela forma indistinta como é chegado a cada um, vítima ou algoz, o despertar da consciência após o contato com Ele.

          Da mesma forma, ainda hoje, nos pequenos e grandes acontecimentos da nossa vida, em que podemos nos encontrar no papel de vítima ou algoz, sabemos que, no propósito de favorecer o nosso crescimento espiritual, ele estará sempre nos socorrendo com a sua Infinita Compreensão.

        



[1] ROPS, Henri Daniel. A vida Diária nos Tempos de Jesus. Tradução Neyd Siqueira. 3ª ed. rev.  São Paulo: 
        Vida Nova, 2008. P. 147
[2]Deuteronômio 5:21
[3]ROPS, Henri Daniel. A vida Diária nos Tempos de Jesus. Tradução Neyd Siqueira. 3ª ed. rev.  São Paulo: 
        Vida Nova, 2008. P. 153
[4] Números 5:11-31
[5] FRANCO, Divaldo Pereira. Trigo de Deus. Ditado pelo Espírito de Amélia Rodrigues. Salvador: Livraria  
       Espírita Alvorada, 1993. P. 80
[6] João 8:1-11
[7] GIBRAN, Khalil. Jesus O Filho do Homem. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2009.
     P.30/31
[8] FRANCO, Divaldo Pereira. Pelos Caminhos de Jesus. Ditado pelo Espírito de Amélia Rodrigues. Salvador:
       Livraria  Espírita Alvorada, 2002. P. 107-112
[9] Concupiscência:  Inclinação a gozar os bens terrestres, particularmente os prazeres sensuais.
[10] FRANCO, Divaldo Pereira. Trigo de Deus. Ditado pelo Espírito de Amélia Rodrigues. Salvador: Livraria  
       Espírita Alvorada, 1993. P. 81
[11] Exulceração: Dor, sofrimento moral

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