segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A falsa liberdade e a Síndrome do “TER DE”


 Lya Luft

Essa é uma manifestação típica do nosso tempo, contagiosa e difícil de curar porque se alimenta da nossa fragilidade, do quanto somos impressionáveis, e da força do espírito de rebanho que nos condiciona a seguir os outros. Eu tenho de fazer o que se espera de mim. Tenho de ambicionar esses bens, esse status, esse modo de viver – ou serei diferente, e estarei fora.

Temos muito mais opções agora do que alguns anos atrás, as possibilidades que se abrem são incríveis, mas escolher é difícil: temos de realizar tantas coisas, são tantos os compromissos, que nos falta o tempo para uma análise tranquila, uma decisão sensata, um prazer saboreado.

A gente tem de ser, como escrevi tantas vezes, belo, jovem, desejado, bom de cama (e de computador). Ou a gente tem de ser o pior, o mais relaxado, ou o mais drogado, o chefe da gangue, a mais sedutora, a mais produzida. Outra possibilidade é ter de ser o melhor pai, o melhor chefe, a melhor mãe, a melhor aluna; seja o que for, temos de estar entre os melhores, fingindo não ter falhas nem limitações. Ninguém pode se contentar em ser como pode: temos de ser muito mais que isso, temos de fazer o impossível, o desnecessário, até o absurdo, o que não nos agrada – ou estamos fora.

A gente tem de rir dos outros, rebaixar ou denegrir nem que seja o mais simples parceiro de trabalho ou o colega de escola com alguma deficiência ou dificuldade maior. A gente tem de aproveitar o mais que puder, e isso muitos pais incutem nos filhos: case tarde, aproveite antes! (O que significa isso?) A gente tem de beber em preparação para a balada, beijar o maio número possível de bocas a cada noite, a gente tem de.

A propaganda nos atordoa: temos de ser grandes bebedores (daquela marca de bebida, naturalmente), comprar o carro mais incrível, obter empréstimos com menores juros, fazer a viagem maravilhosa, ter a pele perfeita, mostrar os músculos mais fortes, usar o mais moderno celular, ir ao resort mais sofisticado.

Até no luto temos de assumir novas posturas: sofrer vai ficando fora de moda.

Contrariando a mais elementar psicologia, mal perdemos uma pessoa amada, todos nos instigam a passar por cima. “Não chore, reaja”, é o que mais ouvimos. “Limpe a mesa dele, tire tudo do armário dela, troque os móveis, roupas de cama, mude de casa.” Tristeza e recolhimento ofendem nossa paisagem de papelão colorido. Saímos do velório e esperam que se vá depressa pegar a maquilagem, correr para a academia, tomar o antidepressivo, depressa, depressa, pois os outros não aguentam mais, quem quer saber da minha dor?

O “ter de” nos faz correr por aí com algemas nos tornozelos, mas talvez a gente só quisesse ser um pouco mais tranquilo, mais enraizado, mais amado, com algum tempo para curtir as coisas pequenas e refletir. Porém temos de estar à frente, ainda que na fila do SUS.

Se pensar bem, verei que não preciso ser magro nem atlético nem um modelo de funcionário, não preciso ter muito dinheiro ou conhecer Paris, não preciso nem mesmo ser importante ou bem-sucedido. Precisaria, sim, ser um sujeito decente, encontrar alguma harmonia comigo mesmo, com os outros, e com a natureza na qual fervilha a vida e a morte é apaziguadora.

Em lugar disso, porém, abraçamos a frustração, e com ela a culpa.

A culpa, disse um personagem de um filme, “e como uma mochila cheia de tijolos. Você carrega de um lado para o outro, até o fim da vida. Só tem um jeito: jogá-la fora”. Mas ela tem raízes fundas em religiões e crenças, em ditames da família, numa educação pelo excessivo controle ou na deseducação pela indiferença, na competitividade no trabalho e na pressão de nosso grupo, que cobra coisas demais.

Dizem que devemos nos informar melhor, mas quanto mais informação, mais dúvidas; quanto mais abertura, mais opções; quanto mais olhamos, mais se expande a tela onde se projetam nosso desejos.

Nessa rede de complexidades, seria bom resistir à máquina da propaganda e buscar a simplicidade, não sucumbir ao impulso da manada que corre cegamente em frente. Com sorte, vamos até enganar o tempo sendo sempre jovens, sendo quem sabe imortais com nariz diminuto, boca ginecológica e olhar fatigado num rosto inexpressivo. Não nos faltam recursos: a medicina, a farmácia, a academia, a ilusão, nos estendem ofertas que incluem músculos artificiais, novos peitos, pele de porcelana, e grandes espelhos, espelho, espelho meu. Mas a gente nem sabe direito onde está se metendo, e toca a correr porque ainda não vimos tudo, não fizemos nem a metade, quase nada entendemos. Somos eternos devedores.

Ordens aqui e ali, alguém sopra as falas, outro desenha os gestos, vai sair tudo bem: nada depressivo nem negativo, tudo tem de parecer uma festa, noite de estreia com adrenalina a aplausos ao final. 

Autora: Lya Luft 
Livro: Múltipla escolha Editora: Record Ano: 2010
Imagem:"Margens do Rio Sena" - Pierre Auguste Renoir Pintor francês (1841-1919)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

TRISTEZA E DEPRESSÃO

José de Matos
Médico Psicanalista Psiquiatra

Muitas vezes, encontramos a depressão definida como uma grande tristeza. No entanto, para fins diagnósticos e abordagem terapêutica, deve-se entender melhor ambas as estruturas.

Na tristeza geralmente ocorreu uma perda à qual este sentimento decorre como uma reação. Nas perdas, menos significativas, o sentimento de luto é sentido como proporcional ao fato e não demora que se concorde com o adágio popular que diz que "vão-se os anéis mas ficam os dedos". Perder um objeto do qual se gosta, leva a uma certa sensação de "faltar algo" mas o próprio decorrer da vida, se encarregará de obter-se formas de superação e recuperação. Nas perdas mais significativas (e nesta situação incluem-se as perdas por morte), o sentimento de "faltar um pedaço" é bem mais forte. Pensando-se que guardamos arquivadas na mente, imagens acopladas a sentimentos, a falta por morte não é suficiente para "convencer a mente" que o objeto não mais existe. Qualquer sinal (uma porta batendo, ruídos de passos) pode recuperar a memória do objeto e seu sentimento, ressuscitando-o por instantes, criando uma ilusão, por segundos, que ele não se foi, para logo em seguida, haver o baque da realidade e a volta do sentimento de luto. Como se o luto fosse um processo de arrancamento gradual de cada raiz de memória e sentimento entranhado na mente. Por isso, pode ser um processo mais longo e penoso, até que se transforme em saudade.

Na depressão (denominada por Freud como melancolia) o problema é mais grave. A lesão de uma perda (que não se prende exclusivamente à morte), pode atingir camadas psíquicas bem mais profundas, causando uma verdadeira desarrumação psíquica. Digamos, no luto o objeto se perde no universo da vida ficando somente memória e sentimento como resquícios da ligação. Na depressão, o objeto se perde no universo do mundo interno, podendo manter-se com intensas cargas energéticas tumultuando todo o funcionamento do psiquismo. Por isso, diz-se que no luto, o mundo, por algum tempo, perde a graça e na melancolia o ego perde a graça e motivo para sobreviver. Por exemplo, a perda real de um personagem da vida, controvertido, vai mergulhar uma representação dentro do psiquismo com todos os paradoxos podendo, muitas vezes, transformar o morto num objeto morto/vivo interno.

Sem dúvida a psicofarmacologia evoluiu muito no tratamento das depressões mas a psicanálise pode ajudar bastante na elucidação do significado destas cargas emocionais controvertidas que, mortas/vivas continuam atuando no mundo interno.

Fonte: https://www.facebook.com/jotadematos/?ft[tn]=k&ft[qid]=6322932687262461137&ft[mf_story_key]=8638850184613696984&ft[ei]=AI%40aea692a29621a27465fbfb4fe7450ba0&ft[fbfeed_location]=1&ft[insertion_position]=1&__md__=1

terça-feira, 16 de agosto de 2016

saudade




Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade”


Caio Fernando Abreu.

sábado, 13 de agosto de 2016

Lindo texto!

Resultado de imagem para livros desenho

Heloísa Seixas
Escrito em 17/06/2001
Publicada no livro Uma Ilha Chamada Livro (2010)
Publicado também na Revista da TAG de agosto/2016


Li certa vez que Alma Mahler guardava, na sala de sua casa, o berço em que dormira na primeira infância. Era um berço antigo de madeira, tosco, desses com um dispositivo que os faz balançar docemente, ao menor toque. Ali, no bojo vazio daquela que um dia fora sua própria cama, Alma guardava seus livros prediletos.

Arrumava-os, empilhados, em várias camadas, enchendo todo o espaço onde um dia houvera um colchão, lençóis, brinquedos e uma criança – ela própria. Certamente, quando remexia nos livros, buscando algum em especial, um livro para enternecer-se, para recordar ou esquecer – que é para isso que serve reler livros prediletos –, certamente, então, seu braço, esbarrando na lateral gradeada, fazia o berço balançar. E ela os ninava, talvez sem perceber.

Essa imagem de livros queridos sendo acalentados me encheu de ternura. Assim como um dia me comoveu ler o depoimento de Isak Dinesen, falando sobre a ansiedade que sentia, em sua fazenda na África, enquanto aguardava a chegada dos livros encomendados na Inglaterra. E de como, ao recebê-los, tocava cada volume com a ponta dos dedos, como se retirasse da caixa copos de finíssimo cristal. Sabia, ao tocá-los, que aqueles seriam seus únicos exemplares durante meses, até que chegasse nova remessa. Eram um tesouro insubstituível.

“Por isso, eu torcia para que os escritores tivessem dado tudo de si ao escrevê-los”, explicou. É curioso. Porque ela própria, Isak Dinesen, escrevia assim, sem economizar, sem fazer concessões, pegando cada camada da narrativa e dissecando-a até o último fio. Escrevia dando tudo de si, entregando-se em cada linha – como se esperasse ser lida por um náufrago numa ilha deserta.

Esse amor pelos livros me comove, um amor que venho aprendendo a desenvolver, nos últimos anos. Antes, guardava meus livros de qualquer jeito, sem qualquer ordem nas estantes. E, ao lê-los, pouco me importava se os abria demais, se os virava ao contrário, se deixava a ponta da capa se enrolar numa feia orelha.

Estou mudando. Hoje, presto atenção nas pessoas que sabem cuidar bem de suas bibliotecas e observo a maneira como decidem a posição de cada volume nas estantes, o carinho com que tiram os mais antigos das prateleiras para tentar restaurar as lombadas, alisando-as cuidadosamente com goma e pincel. São gestos de uma delicadeza comovente, cuja observação me faz refletir. E, cada vez mais, tenho diante dos livros uma atitude de reverência. Olho-os e vejo como eles são puros, íntegros – como as crianças e os cristais.

Fonte: http://heloisaseixas.com.br/contos-minimos/2001-2/

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O MEU DEUS É LIBERAL, ENTÃO POR QUE EU NÃO SERIA?



Um grande parte dos nossos sofrimentos emocionais são causadas por conflitos entre as crenças que professamos e a forma como agimos. Muitas pessoas dizem acreditar na concepção ocidental de Deus, mas quando questionadas acerca de suas condutas, mostram-se bem distantes da essência dessa imagem.
Esse Deus ocidental é bom, amoroso, imutável, perfeito, onisciente, onipresente e onipotente, traços que por si só já o definem como eternamente centralizado e nunca polarizado. Um dos principais argumentos relacionados à essa figura é o livre-arbítrio.

Enquanto Deus é assumidamente reconhecido como liberal, a maioria dos que se dizem deístas são conservadores, tiranos, autoritários e polarizados entre esquerda e direita. São intolerantes e relativizam o peso que um mesmo evento tem quando ocorre contra ou a favor de seu pensamento.

A figura de Deus não é reguladora, não se define por Estado ou Democracia, mas sim por plena e total liberdade. Um padre poderá ser degolado e Deus nada fará para impedir isso, porque se o fizesse seria parcial, regulador e, portanto, não-Deus. Qualquer tentativa de imposição de regras, normas e conceitos convencionados define apenas o caráter das pessoas que as proclamaram, mas nunca Deus.

Moisés foi uma figura conservadora, estadista, que regulava as decisões. Pôncio Pilatos foi um democrata, que decidia pela vida ou morte de outro ser humano baseado no número de mãos levantadas. Jesus, por outro lado, foi um libertário, alguém que confiava nas próprias palavras, e que não obrigava ninguém a segui-lo ou a pensar como ele.

Se nem mesmo Deus se preocupa com a regulação, porque um grupo de pessoas o faz? Ninguém pode definir o que podemos ou não comer, fumar, vestir, pensar, transar, etc. Ninguém. Quem pensa deter esse poder baseado em interpretações tendenciosas é movido pelo próprio ego e pela ilusão de ser um intérprete de Deus.

Se quer sofrer menos, escolha seguir e amar a um Deus ou a uma filosofia que esteja de acordo com seu modus vivendi, caso contrário, estará sempre gestando conflitos intrapsíquicos inconscientes que não lhe permitirão viver em paz, pois sempre haverá incômodo na forma como os outros vivem suas vidas.

Eu não sou de esquerda, não sou de direita e não sou de centro, eu sou livre, pois minha referência de conduta é o Deus ocidental e se Ele me disse que eu posso fazer o que bem entender arcando com as consequências, não será um grupo de doutores da lei que me convencerá do contrário.