Maria Áurea Ribeiro
Caridade sem autoconhecimento é pura filantropia[i], termo
que foi criado por Flávio Cláudio Juliano, imperador romano, que tinha como objetivo restaurar o paganismo
como religião dos romanos, e com este intento, imitou a igreja cristã criando o
termo "filantropia" para concorrer com o termo cristão caridade, que
era uma das virtudes da nova religião e que nunca tinha sido parte do paganismo
em Roma ou Atenas. Ainda hoje, muitos de nós, fazemos confusão entre os dois
termos em razão do desconhecimento do sentido profundo do termo caridade à luz
dos ensinamentos de Jesus.
Nós, os espíritas, temos como divisa o lema FORA DA
CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO. Mas buscamos desenvolver em nós aquela caridade
ensinada por Jesus nos seus evangelhos. Aquela caridade totalmente baseada no
processo de reforma íntima que é o “carro chefe” da nossa Doutrina Espírita.
Conforme pesquisa feita pelo escritor espírita Jorge
Damas Martins, na sua obra A Bandeira do Espiritismo: origem histórica e
crítica,[ii]
essa divisa foi revelada gradativamente. Primeiramente, foi preparado o terreno
nos dois primeiros livros da codificação espírita, O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns,
para depois ser confirmada definitivamente, por vários Espíritos, em O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Mas para defendê-la, através de uma vivência sincera,
é fundamental que compreendamos o verdadeiro significado da palavra caridade. Conforme
definição dos Espíritos, em resposta à questão 886 de O Livro dos Espíritos,[iii] caridade é “benevolência para com todos,
indulgência para as imperfeições alheias e perdão das ofensas”. Como precisamos
compreender emocionalmente a universalidade contida nessa resposta, para poder
darmos os primeiros passos em sua prática! Só o autoconhecimento pode nos
libertar das máscaras que obscurecem o nosso
verdadeiro eu, capaz de compreender e viver o amor em sua maior plenitude e
assim praticar essa caridade tão desejada por nós.
Recentemente, estive um período meio longo
acompanhando um familiar em um hospital de nossa cidade. Nós acompanhantes tínhamos
que ficar sentadas em cadeiras de plásticos. Era um desconforto total. Depois
de quinze dias acomodadas, em corredores e anexos, fomos “sorteadas” com um
lugar em uma enfermaria e lá chegando tivemos uma experiência singular. A única
forma de aguentar o desconforto durante a noite era lendo um bom livrinho até o
dia amanhecer. Mas na enfermaria que nós ficamos chegou uma senhora bem simples
que resolveu se juntar a mim, enquanto eu lia, lendo e explicando, em voz alta,
a sua Bíblia sem a menor preocupação se estava interrompendo ou não a minha
leitura. Exatamente por essa absoluta falta de respeito a religião alheia, sempre cultivei muito
preconceito contra os evangélicos e fiquei
furiosa por não poder mais ler os meus livros, que tanto me ajudavam a passar à noite. Mas
entre agredi-la – o que era a minha vontade – e me recolher para o interior da
enfermaria em silêncio, eu fiz a segunda opção. No decorrer dos dias, algumas vezes, quando ela queria movimentar a velhinha de
chumbo dela (porque pesava!!!), ela dizia “irmã me dê uma ajudazinha” e eu
ajudava, mas dentro de mim ficava pensando “além de não me deixar ler ainda vai
acabar com o resto da minha coluna” e confesso que ficava indignada! Como as
outras acompanhantes estavam sempre se revezando e nós não tínhamos com quem revezar, ficávamos
dia e noite frente a frente. Por não poder fazer mais nada, passei a
observá-la. Dia após dia ela cuidava da velhinha com uma dedicação, com um
amor, com uma paciência e sem uma queixa sequer que encantava a todos nós.
Naturalmente, pensávamos que se tratava de mãe e filha. Depois da décima noite,
ficamos só nós duas de acompanhante e ela me contou a história da velhinha:
“Ela, a velhinha, fazia parte da igreja dela, a
acompanhante, há pouco tempo, mas já
tinha recebido Jesus como Salvador e por isso eram irmãs em Cristo. Era
solteira e não tinha ninguém em nossa cidade. Um dia tinha caído em um posto de
saúde e tinha sido levada para o hospital. Ela já tinha tentado localizar a
família da velhinha no interior, mas nada tinha conseguido. Durante o período
pré-operatório (quatro meses) ela tinha ficado só hospital, tinha caído duas
vezes da cama, tinha quebrado o nariz uma vez e quando chegou momento de operar
os médicos disseram que ela não podia ficar só no pós-operatório. Ela, a
acompanhante, disse que pensou “se eu ficar em casa sabendo que ela está
sozinha no hospital não vou dormir” e então tinha pedido ao marido para cuidar
dos filhos e tinha ido cuidar da velhinha.”
Eu fiquei chocada! E eu me perguntei “será que eu faria isso por uma pessoa
completamente estranha? Sim, porque depois de seis dias e seis noites sentada
naquelas cadeiras de plástico a gente já não consegue mais acomodar o corpo de
nenhuma forma e não se sabe qual a parte do corpo dói mais. E ela, nesse dia,
já estava com dez dias e ela estava ali, firme, sem uma queixa dia após dia. Foi
então que caiu o véu e eu compreendi o
meu nível de preconceito, o meu nível de intolerância e o meu nível de egoísmo.
Pude, então, vislumbrar o significado do que é essa caridade de que falam os
Espíritos.
Hoje me sinto mais leve e mais livre depois dessa
experiência. Sinto que melhorei uma pouco nos quesitos preconceito e
intolerância, mas tenho me questionado muito sobre a caridade que tenho
praticado até e hoje e continuarei refletindo até encontrar o meu caminho nessa
vivência cristã. Desconfio que na filantropia damos do nosso “ter” e que na
caridade damos mesmo do nosso “ser” e, de tal forma, que só conseguiremos a
verdadeira prática quando nos libertarmos de todos nossos vícios morais, que
obscurecem o nossos sentidos nos impedindo de praticar o amor pleno como Jesus
ensinou e foi compreendido por Paulo de Tarso ao dizer “não sou eu que vivo,
mas o Cristo que vive em mim” (Gl 2:20).
Imagem retirada do site: http://terapiasnaturaiseholisticas.blogspot.com.br/2010_04_01_archive.html
[i] Filantropia significa "amor à
humanidade". Os donativos a organizações humanitárias, pessoas,
comunidades, ou o trabalho para ajudar os demais, direta ou através de
organizações não governamentais sem fins lucrativos, assim como o trabalho
voluntário para apoiar instituições que têm o propósito específico de ajudar os
seres vivos e melhorar as suas vidas, são considerados atos filantrópicos.. –
Retirado do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Filantropia. Acesso: 28/10/2012.
[ii] MARTINS, j. Damas,
BARROS, s. Monteiro de. A Bandeira do Espiritismo: origem histórica e crítica.
Rio de Janeiro. Folha Carioca, 2001
[iii] KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. Tradução de J. Herculano Pires. 66ª ed. São Paulo: LAKE, 2006. Questão 886.