Maria Áurea Ribeiro
O papel da mulher judia na sociedade, nos
tempos de Jesus, retratava ainda a mesma dependência a que ela se submetia nos
tempos de Moisés. Lembra Daniel-Rops[1]
que tudo começou em decorrência de uma interpretação de um dos dez mandamentos: “Não cobiçarás a mulher do teu
próximo; nem desejarás para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o
seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa
alguma que pertença a teu próximo”[2],
os homens concluíram então que a esposa lhes pertencia como qualquer outro bem.
Aos olhos da Lei a mulher era considerada menor, irresponsável, mas do ponto
vista religioso ela não tinham as obrigações que os homens tinham, mas eram
aconselhadas a conhecerem a Lei tão bem que pudessem instruir os filhos e
instar os maridos a cumprirem suas obrigações religiosas. Dentro do lar ela era
muito importante. Era ela que produzia uma variedade de artigos, abastecia sua
casa de água e cuidava do óleo muito puro para a lâmpada do Sábado de Descanso,
a fim de que não se apagasse nesse dia santo.
A Bíblia, escrita por homens, enfatiza as falhas femininas e pouco
destaca as falhas masculinas. A lei de Israel era muito rigorosa,
principalmente, com a mulher adúltera, pois se baseava diretamente em um dos
mandamentos do decálogo: “não cometerás adultério”. Mas conforme Rops[3] a
definição de adultério para a mulher não era a mesma para o homem. O adultério
masculino só era crime se ele seduzisse uma mulher que estivesse noiva ou fosse
casada, porque então estaria prejudicando a família do outro. Mas a mulher
suspeita de adultério deveria passar pela mesma prova da água amarga aplicada
às noivas, descrita no livro de Números[4]:
tinha de beber uma mistura horrível, cujo principal ingrediente era pó do chão
do templo, e se vomitasse ou se sentisse mal sua culpa era tida como certa. Se
fosse apanhada em flagrante era condenada à morte. Eles a arrastavam “pela gola do vestido” diante do povo e a matavam. A morte por apedrejamento foi
estabelecida em Deuterônomio apenas no caso das noivas infiéis. Mas tarde, a
morte por estrangulamento foi introduzida para as adúlteras no sentido mais
exato da palavra. Ao que parece, porém, pelo conhecido exemplo da mulher
apanhada em adultério, no Evangelho de João, as esposas infiéis eram certamente
apedrejadas nos dias de Jesus e Amélia Rodrigues[5]
completa a informação dizendo que “condenava-se
a mulher fragilizada pelo erro, sem examinar-se a responsabilidade do cônjuge
ou a culpa daquele que delinquira e a levara ao deslize”.
Conta João, no seu Evangelho[6],
que Jesus
foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e
todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os
doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério,
- conforme Khalil Gibran[7],
ela chamava-se Joana, era mulher do camareiro de Herodes e amante de um saduceu
- colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a
pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais
mulheres. E Tu que dizes?» Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa
armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se
a escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes:
«Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E, inclinando-se novamente
para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um,
a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio
deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles?
Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus:
«Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.»
Para todos nós, que julgamos o nosso
próximo com tanta facilidade, parece uma atitude exemplar de Jesus perdoar a
mulher adúltera, porque a nossa visão limitada abrange apenas a cena narrada
por João. Não temos ainda uma visão que transcenda os fatos limitados pelos
nossos cinco sentidos.
Mas a extensão dessa ação de Jesus
vai bem mais além desse quadro apresentado por João, o evangelista. Com um
olhar mais abrangente, envolvendo todos que fizeram parte desse acontecimento,
Amélia Rodrigues[8] conta sobre os fatos que
se seguiram após esse momento. Naquela noite, a mulher busca Jesus para contar
a sua história: tinha lutado muito antes de tombar... O sedutor tinha rondado
seus passos como lobo voraz ante a presa invigilante... O esposo, passados os
primeiros dias da novidade conjugal, retornou às noitadas alegres, deixando-a
em solidão... Enferma da alma e carente embriagou-se de concupiscência[9],
agora padecendo a zombaria geral, abandonada e sem lar, não sabia que rumo a
seguir e o Mestre indica o roteiro: “
“Não são de importância o que os outros pensam de
nós e a cobrança, pela impiedade, com que desejam fazer justiça. O problema
íntimo é vital e somente quando o homem se reintegra no concerto da ordem, do bem, é que pode
fruir de tranquilidade... Assim, busca a oportunidade de reparação e adapta-te
à situação atual, aguardando o amanhã com a disposição de quem compreende o
prejuízo a si mesmo causado, ao arrojar fora o hoje...”
E continua contando, no mesmo texto,
que dez anos depois, na cidade de Tiro, uma casa humilde de aspecto e rica de
amor, recolhia peregrinos cansados e enfermos sem ninguém. Uma mulher reunia
ali os infelizes, limpava-lhes as chagas e falava-lhes de Jesus. Tornara-se,
por isso, querida e respeitada por todos.
Um dia um homem chagado em extrema
penúria é recolhido nesse abrigo, tendo as úlceras lavadas e aliviadas,
ouvindo-a falar sobre Jesus conta-lhe sua história: “Também eu tive a honra de O conhecer, mas não soube beneficiar-me...Salvou
a minha mulher que adulterara contra mim e não me concedeu uma palavra, sequer,
de consolação...Passados os anos e havendo despertado para a verdade, tenho-a
buscado em vão por toda parte, até que a doença me devorou o corpo...”
Naquele mesmo
tempo, o antigo sedutor[10]
encontrava-se vencido por dermatoses sifilíticas... sendo expulso da cidade sob
suspeição de lepra... após vagar sem rumo, alquebrado quão infeliz, passou a
recordar-se das suas vítimas, quando, quase desfalecente, foi recolhido na Casa
do Caminho, na estrada de Jope, e ali recebeu das mãos caridosas de Simão Pedro
o tratamento adequado e o apoio moral para a exulceração[11]
íntima.
O olhar de Jesus envolve a todos
indistintamente e o socorro que parece chegar apenas a vítima, na verdade, se
estende também a todos que se encontram entrelaçados no drama dela.
O exemplo de não julgamento se
evidencia pela forma indistinta como é chegado a cada um, vítima ou algoz, o
despertar da consciência após o contato com Ele.
Da mesma forma, ainda hoje, nos
pequenos e grandes acontecimentos da nossa vida, em que podemos nos encontrar
no papel de vítima ou algoz, sabemos que, no propósito de favorecer o nosso
crescimento espiritual, ele estará sempre nos socorrendo com a sua Infinita
Compreensão.
[1] ROPS, Henri Daniel. A vida Diária nos Tempos de Jesus.
Tradução Neyd Siqueira. 3ª ed. rev. São
Paulo:
Vida
Nova, 2008. P. 147
[2]Deuteronômio 5:21
[3]ROPS, Henri Daniel. A vida Diária nos Tempos de Jesus.
Tradução Neyd Siqueira. 3ª ed. rev. São
Paulo:
Vida
Nova, 2008. P. 153
[4] Números 5:11-31
[5] FRANCO, Divaldo Pereira. Trigo de Deus. Ditado pelo Espírito de
Amélia Rodrigues. Salvador: Livraria
Espírita
Alvorada, 1993. P. 80
[6] João 8:1-11
[7] GIBRAN, Khalil. Jesus O Filho do Homem. Tradução Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2009.
P.30/31
[8] FRANCO, Divaldo Pereira. Pelos Caminhos de Jesus. Ditado pelo
Espírito de Amélia Rodrigues. Salvador:
Livraria Espírita Alvorada, 2002. P. 107-112
[9] Concupiscência:
Inclinação a gozar os bens
terrestres, particularmente os prazeres sensuais.
[10] FRANCO, Divaldo Pereira. Trigo de Deus. Ditado pelo Espírito de
Amélia Rodrigues. Salvador: Livraria
Espírita
Alvorada, 1993. P. 81
[11] Exulceração: Dor,
sofrimento moral
Imagem
retirada do site: http://www.febnet.org.br/reformadoronline/pagina/?id=87http://www.febnet.org.br/reformadoronline/pagina/?id=87