domingo, 28 de outubro de 2012

Caridade sem autoconhecimento


Maria Áurea Ribeiro
 
Caridade sem autoconhecimento é pura filantropia[i], termo que foi criado por Flávio Cláudio Juliano, imperador romano, que  tinha como objetivo restaurar o paganismo como religião dos romanos, e com este intento, imitou a igreja cristã criando o termo "filantropia" para concorrer com o termo cristão caridade, que era uma das virtudes da nova religião e que nunca tinha sido parte do paganismo em Roma ou Atenas. Ainda hoje, muitos de nós, fazemos confusão entre os dois termos em razão do desconhecimento do sentido profundo do termo caridade à luz dos ensinamentos de Jesus.
Nós, os espíritas, temos como divisa o lema FORA DA CARIDADE  NÃO HÁ SALVAÇÃO.  Mas buscamos desenvolver em nós aquela caridade ensinada por Jesus nos seus evangelhos. Aquela caridade totalmente baseada no processo de reforma íntima que é o “carro chefe” da nossa Doutrina Espírita.
Conforme pesquisa feita pelo escritor espírita Jorge Damas Martins, na sua obra A Bandeira do Espiritismo: origem histórica e crítica,[ii] essa divisa foi revelada gradativamente. Primeiramente, foi preparado o terreno nos dois primeiros livros da codificação espírita,  O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, para depois ser confirmada definitivamente, por vários Espíritos,  em O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Mas para defendê-la, através de uma vivência sincera, é fundamental que compreendamos o verdadeiro significado da palavra caridade. Conforme definição dos Espíritos,  em resposta  à questão 886 de  O Livro dos Espíritos,[iii]  caridade é “benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições alheias e perdão das ofensas”. Como precisamos compreender emocionalmente a universalidade contida nessa resposta, para poder darmos os primeiros passos em sua prática! Só o autoconhecimento pode nos libertar das máscaras que obscurecem o  nosso verdadeiro eu, capaz de compreender e viver o amor em sua maior plenitude e assim praticar essa caridade tão desejada por nós.
Recentemente, estive um período meio longo acompanhando um familiar em um hospital de nossa cidade. Nós acompanhantes tínhamos que ficar sentadas em cadeiras de plásticos. Era um desconforto total. Depois de quinze dias acomodadas, em corredores e anexos, fomos “sorteadas” com um lugar em uma enfermaria e lá chegando tivemos uma experiência singular. A única forma de aguentar o desconforto durante a noite era lendo um bom livrinho até o dia amanhecer. Mas na enfermaria que nós ficamos chegou uma senhora bem simples que resolveu se juntar a mim, enquanto eu lia, lendo e explicando, em voz alta, a sua Bíblia sem a menor preocupação se estava interrompendo ou não a minha leitura. Exatamente por essa absoluta falta de respeito  a religião alheia, sempre cultivei muito preconceito contra os evangélicos e  fiquei furiosa por não poder mais ler os meus livros,  que tanto me ajudavam a passar à noite. Mas entre agredi-la – o que era a minha vontade – e me recolher para o interior da enfermaria em silêncio, eu fiz a segunda opção.  No decorrer dos dias, algumas vezes,  quando ela queria movimentar a velhinha de chumbo dela (porque pesava!!!), ela dizia “irmã me dê uma ajudazinha” e eu ajudava, mas dentro de mim ficava pensando “além de não me deixar ler ainda vai acabar com o resto da minha coluna” e confesso que ficava indignada! Como as outras acompanhantes estavam sempre se revezando  e nós não tínhamos com quem revezar, ficávamos dia e noite frente a frente. Por não poder fazer mais nada, passei a observá-la. Dia após dia ela cuidava da velhinha com uma dedicação, com um amor, com uma paciência e sem uma queixa sequer que encantava a todos nós. Naturalmente, pensávamos que se tratava de mãe e filha. Depois da décima noite, ficamos só nós duas de acompanhante e ela me contou a história da velhinha:
“Ela, a velhinha, fazia parte da igreja dela, a acompanhante,  há pouco tempo, mas já tinha recebido Jesus como Salvador e por isso eram irmãs em Cristo. Era solteira e não tinha ninguém em nossa cidade. Um dia tinha caído em um posto de saúde e tinha sido levada para o hospital. Ela já tinha tentado localizar a família da velhinha no interior, mas nada tinha conseguido. Durante o período pré-operatório (quatro meses) ela tinha ficado só hospital, tinha caído duas vezes da cama, tinha quebrado o nariz uma vez e quando chegou momento de operar os médicos disseram que ela não podia ficar só no pós-operatório. Ela, a acompanhante, disse que pensou “se eu ficar em casa sabendo que ela está sozinha no hospital não vou dormir” e então tinha pedido ao marido para cuidar dos filhos e tinha ido cuidar da velhinha.”
Eu fiquei chocada! E eu me perguntei  “será que eu faria isso por uma pessoa completamente estranha? Sim, porque depois de seis dias e seis noites sentada naquelas cadeiras de plástico a gente já não consegue mais acomodar o corpo de nenhuma forma e não se sabe qual a parte do corpo dói mais. E ela, nesse dia, já estava com dez dias e ela estava ali, firme, sem uma queixa dia após dia. Foi então que caiu o véu e  eu compreendi o meu nível de preconceito, o meu nível de intolerância e o meu nível de egoísmo. Pude, então, vislumbrar o significado do que é essa caridade de que falam os Espíritos.
Hoje me sinto mais leve e mais livre depois dessa experiência. Sinto que melhorei uma pouco nos quesitos preconceito e intolerância, mas tenho me questionado muito sobre a caridade que tenho praticado até e hoje e continuarei refletindo até encontrar o meu caminho nessa vivência cristã. Desconfio que na filantropia damos do nosso “ter” e que na caridade damos mesmo do nosso “ser” e, de tal forma, que só conseguiremos a verdadeira prática quando nos libertarmos de todos nossos vícios morais, que obscurecem o nossos sentidos nos impedindo de praticar o amor pleno como Jesus ensinou e foi compreendido por Paulo de Tarso ao dizer “não sou eu que vivo, mas o Cristo que vive em mim” (Gl 2:20).  
         Imagem retirada do site: http://terapiasnaturaiseholisticas.blogspot.com.br/2010_04_01_archive.html


[i] Filantropia significa "amor à humanidade". Os donativos a organizações humanitárias, pessoas, comunidades, ou o trabalho para ajudar os demais, direta ou através de organizações não governamentais sem fins lucrativos, assim como o trabalho voluntário para apoiar instituições que têm o propósito específico de ajudar os seres vivos e melhorar as suas vidas, são considerados atos filantrópicos.. – Retirado do site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Filantropia. Acesso: 28/10/2012.
[ii] MARTINS, j. Damas, BARROS, s. Monteiro de. A Bandeira do Espiritismo: origem histórica e crítica. Rio de Janeiro. Folha Carioca, 2001
[iii] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de J. Herculano Pires.  66ª ed. São Paulo: LAKE, 2006. Questão 886.


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