terça-feira, 9 de setembro de 2014

Reencarnação


Quando cara é bom ele nos encanta até defendendo um ponto de vista contrário ao nosso. Vejam esse  texto de Rubem Alves sobre reencarnação. Que coisa linda!

Uma amiga querida, ex-aluna, kardecista, me disse com um tom carinhoso que eu ficaria melhor se abandonasse a minha incredulidade e acreditasse na reencarnação. Com a reencarnação tudo se explicaria. O universo é lógico, tudo se encaixa, parece bordado, a gente vê o lado avesso, mas tem o direito que a gente não vê, tudo que parece ser desarmonia do lado de cá é harmonia do lado de lá. A certeza disso apazigua a alma. A gente sofre com resignação. O final feliz está sempre garantido.

Aí tive de esclarecer o equívoco sobre a minha religião.

“Pois saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito: ‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás para adiante, de diante para trás. O futuro não me interessa. Eu nunca o vivi, por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o céu: o tempo infinito deve ser um tédio insuportável. E o mais terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem evoluir.: canto de sabiá, vermelho do sol poente, cheiro de café fresquinho, os poemas de Cecília Meireles, ipês floridos, a sonata Appassionata de Beethoven, uma jabuticaba madura…

O que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas negras brilhantes e túrgidas, aquele “toc” que a jabuticaba faz quando a gente morde – esse objeto é perfeito, divino, sem passado e sem futuro, presente puro destinado à eternidade. Não posso imaginar que alguma evolução lhe possa ser acrescentada.

O que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas idéias e os meus sentimentos… Tenho tristeza pelos pecados que não cometi… Eram pecados tão inocentes… Estou até desconfiado de que Deus está me castigando, ele está me castigando porque eu não pequei o tanto que ele queria que eu pecasse. Tentei ser mais espiritual que o próprio Deus e ele ficou bravo comigo… Não acreditei na advertência de Lutero, escrevendo a Melanchton: “Deus não salva falsos pecadores. Seja um pecador e peque fortemente, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda…” Meu pecado foi pecar com timidez… Tive medo de gozar a vida… Assim, quando são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai-Nosso herético – ou erótico: “O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje…”. 

(in ALVES, Rubem – Do universo à jabuticaba – Planeta- 2010 p. 136/137)

Nenhum comentário:

Postar um comentário